terça-feira, 30 de setembro de 2008

SEM TÍTULO (o ato de desenhar idéias)



o ato de desenhar
idéias assemelha-se
por vezes
a um ritual de caça

uma palavra
(ou uma manada 
delas)

vaga nas
planícies
de uma
fazenda de ar

(e nós
agri (doces) cultores
fazendeiros do ar

sedentários (bárbaros)
admiradores da alma

sentimos a
fome ancestral
da palavra nova)

(: palavra
bicho ingênuo (áporo)
que deus faz brotar 
(sacro ofício)
da boca pra fora)

:

devemos nos acercar
da palavra (daquela
pela qual se guia
a manada) mas
como é difícil distingui-la
entre tantas peles
de lobos e cordeiros

somente é possível
aproximar-se
cercando-se de cuidados

é preciso fingir
(a) hora que ela é comum
(a) hora que ela é sagrada
– entre um ponto e 
outro 
tentar descobrir
de que sub instância
é feito o seu nada)

chega mesmo a hora
em que é preciso dar
um bote
na palavra (o fazendeiro
sibil-vacilante
à espreita)

capturá-la
de uma só vez
numa única bocada
(caçador macunaímico
: chega uma hora em
que não pode ter escrúpulos
nem
nenhuma espécie de caráter)

cada poema
guarda as palavras
caçadas (imoladas
despeladas destrinchadas
esquartejadas : deixadas

prontas para serem saboreadas) de uma maneira
diversa
(a caça é espreitosa
e o poema – o caçador conhece
cada recanto de sua fazenda de ar – é
oportunista (inclusive maldoso
e perverso : especialmente aquele que é belo)


(há (é claro) poemas fotossintéticos
canibais respeitosos

há mesmo
poemas tão miméticos 
que não perdem de vista
as verdades eternas

: densas estrelas anãs
recontam infinitamente
a glória de ser 
a certeza dedicada de cada sol
e sua equidistância (pura errância)

há poemas tão pequenos
(bactérias etéreas) e epopéias
gidantescas – memórias de elefantes
cantos de mil baleias)

: serpentina eterna
voz de víbora (sedentário caçador
estendendo sua rotina) bem-vinda
às mil bocas indistintas
de nosso inferno

PROMETEU DESACORRENTADO




toda noite
quando a águia
vai descansar
sua insaciedade

e dar 
trégua
ao fígado
rudemente
demolido

Prometeu sonha
com o dia
em que
terá fim
sua agonia

(aquele dia
em que os deuses
finalmente
satisfeitos suspendam
sua pena

e transformem
a águia (transfigurada – 
a possessão de uma Erínia
encarnada) : desde antes
sua companheira : amiga
para os dias de caçada
na selva
que a vida
sempre
(tomara-a-deus)
saberá 
ser

: é melhor dor
de-vez
em-quando


e um dia a morte

do que a pouca
e mouca
sorte

de viver
a vida em falso
(nossa des
aparessência)

:

bem sabe Prometeu
que essa liberdade está
a meio nada
de ser verdade)

(POEMA) ABUSADO COMO ELE SÓ



se é (realmente) verdade
o que tens em 
mente

nada – nem ninguém –
poderá tirar (dela) a tua
razão

(: verdade é a própria certeza
e não apenas sua simples
confirmação)

uma vez lançados
os dados – aí 
sim – a lógica
não tem mais
nenhuma outra
opção
: deve (necessariamente)
manter uma direção

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Occidentia, o livro








Occidentia
Orlando Lopes
Poesia
2007
ISBN: 97889998008-8
88 páginas
R$ 20,00 (preço sugerido)

Poemas de Orlando Lopes recuperam em tonalidades contemporâneas o espaço e o tempo da ocidentalidade

Uma cidade "inefável", um modus vivendi litorâneo, diálogos, ecos, ressonâncias de um modelo civilizatório e afetações de diversos campos e sistemas culturais. O local a partir do qual se fala é distante, periférico, desfocado. Pode ser Vitória, capital do Espírito Santo, algum ponto da costa africana, um porto na Índia, quem sabe até mesmo a China. Em todos esses lugares, a ocidentalidade propagou seus fundamentos éticos e suas institucionalidades, suas diversas moralidades. Em todos eles, provocou o surgimento de modos expressivos (como a poesia) e abriu a possibilidade de crises e rupturas sociais e culturais nos graus mais diversos.

Poeta e capixaba, caiçara e cientista humano, Orlando Lopes realiza estudos poéticos sobre uma realidade difusa e dispersa no ambiente da cultura pós-colonial. OCCIDENTIA é uma coletânea de poemas que explora a constituição da "mentalidade ocidental" no espaço da "alteridade brasileira". O livro é um percurso lírico que, por um lado, recorre a expedientes e convenções da literatura ocidental, e que por outro desconstrói o horizonte de expectativas por eles comumente constituído.

Na passagem entre os 22 poemas que integram o livro sucedem-se entonações subjetivas e sobreposições objetivas, construções memoriais e fabulações bioficcionais: usa-se uma subjetividade para explicitar a ocidentalidade que a atravessa e que lhe confere "substância", espessura de real. Seja a percepção "dissoluta" de si mesmo (p. 33), a síntese de um bildungsroman caiçara (em "Fábula", p. 31) ou a resistência aos estereótipos coloniais (em "Mudou-se o tema (onde o mar começa)", p. 27), Orlando Lopes imprime uma dicção peculiar à expressão poética de inflexão latina, como talvez poucas vezes se tenha alcançado em língua portuguesa.

Em outros momentos, a identidade da persona que conduz o roteiro poético de OCCIDENTIA se dilui, abstrai-se para dar espaço à expressão da generalidade de uma ampla "condição humana": partindo de uma autoconsciência muitas vezes corrosiva, alguns poemas chegam à representação da presença "irredutível" de um eu-lírico que se "percebe percebedor" do que acontece em seu interior, e de como ele mesmo afeta e é afetado pelo mundo exterior ("aceitaste / a vertigem / do mundo // e as suas / estranhas / maneiras / de ser", p. 21; "sentes dores / de todo tipo / - as tuas / as dos outros / as do mundo inteiro - / mas não mais / te dilaceras / com isso", p. 22).

Também singular é a configuração "constelar" de "Ética", longo poema (p. 55-77) aglutinador de considerações tangentes às necessidades poéticas e filosóficas que sustentaram as investigações e as descobertas de uma poesia ainda jovem, mas amadurecida pelo exercício contínuo das possibilidades expressivas do português brasileiro. Escrevendo "sem o apoio da linha reta", o poeta ultrapassa a lógica ordinária das causalidades e das teleologias ("encerremos / nossas / discussões / sobre / a lógica // exerçamo-la", p. 57; "o rio / recorre apenas / a si mesmo / (torna-se círculo) / quando deseja / (para além da natureza) / tornar-se / infinito", p. 67; "a língua se / contrexpande / larga lerda mole grande: tempestáculo / de um instante", p. 77).

Visto - lido - de perto, OCCIDENTIA não é um manifesto, nem uma cartilha poética. É uma sucessão de constatações - líricas, poéticas, estéticas, artísticas - em relação a potências difusas da língua portuguesa, e do caráter profundamente ocidental de que esta se reveste.

Orlando Lopes é poeta, pesquisador, professor e ativista cultural. Nasceu em Perocão, aldeia de pescadores de Guarapari, no Espírito Santo, em 1972. Radicado em Vitória, publicou "Hardcore blues - apocalyptic songs" (1993) e participou de diversas antologias e coletâneas literárias. Licenciado em Letras, tem mestrado em Estudos Literários (com dissertação sobre Arnaldo Antunes) e cursa atualmente um doutorado em Literatura Comparada na UERJ (estudando o poema "A Máquina do Mundo", de Carlos Drummond de Andrade).

sábado, 15 de dezembro de 2007

TROGLODITAS LÍRICOS NÃO LEVAM DESAFLOROS PRA CASA.

terça-feira, 16 de outubro de 2007


FÁBULA

.
.
.
joão tenta
encontrar em
maria:

o ar mais quente em
seu hálito
o peso mais denso do
seu corpo
o zelo mais extenso do
seu gosto

mas maria (sesmaria)
é desvairada e absurda:

seu hálito
é apenas o frio do suspenso
seu corpo
é exatamente o aço do costume
seu gosto
é a certeza dedicada do acaso

que opção pode ter joão?

joão é são como sansão
é furtivo como um livro
e vivo como um reflexo desconexo
joão tem inveja todo dia (sem alívio)

joão não pode nada
nesta vida
a não ser
querer desquerer
crer em maria
.
.
.

domingo, 12 de agosto de 2007

ROSA DE VENTOS


sábado, 11 de agosto de 2007

o rosto das pessoas não diz nada
ao poeta: chega o momento
em que ambos não se exergam
não se velam
na extensão de existir

são rostos lívidos
feições apagadas (mínimas)
dos pulsos que regem a vida

pena que o poeta não saiba mais
ignorar-se:esvaziado
pelos outros (que tanto o
infernizaram) viu o poeta
cada vez mais além

e se não chegou a tornar-se
zen
.....................deus-se à falta
.....................como se fosse dádiva

: e os outros se tornaram
seu harém
no canto do olho
resta o que resta
da vida que nos encerra:
resta a treva
treme a relva:
vinga a selva
que não nos salva

nos meus mundos
dizia o poeta
tudo se esfuma
entre um sopro
e outro: tudo é ar
é massa e colosso

tudo é ossatura:
nuvem vapor
fuligem da
indústria mais
crua : as vozes
que emanam
da multidão
passeante pela rua

segunda-feira, 30 de abril de 2007

FEIRA METAFÍSICA (vulgata simileminskiana)

.
.
minha lâmina sem face
descasca abacaxis, pepinos
metafísicos
abacates e cebolas

faço a xepa na feira
das idéias
: um Platão meio amassado
um Aristóteles passado (muito
bons pra sopas e caldos
variados)

almoço bom tem Descartes
enroladinho (e cozido)
Bacon frito, Hume ao ponto
Leibniz ao forno (e um bom
risoto de Spinoza
azeite a gosto, Kant
picadinho)

iguarias
acepipes
de uma dieta nobre
(a alma que não as compra
se não tiver outros cuidados
não se (des)envolve: continua
pobre – apenas rima
e se dissolve no caldeirão
dos cobres)

experimento a lâmina
na minha própria carne
para precisar seu fio
sem maior alarde
(os convivas aguardam
de olho apenas no cardápio

: o melhor sabor vem
quando sabemos o que está no prato)
.
.

FAKETOWN ALUCINA

.
.
mesmo
a cidade
mais falsa
– a mais etérea –

(civita(vitor(viator)ia)te dei)

gera

uma chimera
luminosa (lâmpada
chinesa e longas
línguas de sombras

: arco que enverga
a íris

(azul que
num momento
revira em rosa)

nuvem que brilha
dispersão gozosa

: o maior engodo
da história
.
.

sexta-feira, 27 de abril de 2007

KOAN (tríptico)

I


nuvens negras no calor
vento crescente
sol esvaído
: o dia teve
seu semblante
possuído




II
o céu não quer
exasperar-se (o que
de que (mister)
por que


perder
(áspera diáspora)

o arco a íris
lacrimal
(infiro – firo
– olho que se fere –
o manto negro
que nos descobre
– nós (trans)tornados
o fundo de seu abismo)

: a maior das
clepsidras)


III

enorme massa
peso carregado
(estática)
de mil consciências

esponja negra
(buraco negro)
absorve
o dia inteiro

vida (a seco)
: quanto mais molhadas
mais as nuvens
desafiam o vazio

MUDOU-SE O TEMA (ONDE O MAR COMEÇA)

A aventura é o mar ou essa forma
Que se forma depois, que vai viver
Na memória dos dias?

Egito Gonçalves



a vida inteira
procurar aquela coisa – a coisa –
que nos começa

e encontrar à porta de casa
o mar
que nunca cessa:
oceano que se transforma em ar
e – maresia – nos corrói
entranha-nos ao nos atravessar

nosso mar (também salgado) é mais impessoal
é semi-desumano: ascese de quem não navega
festa mais simples de água peixe sal (não é mar de mitos
não oculta monstros infinitos
nem tesouros de ouro jóias dobrões de prata)

é mar puro
água apenas mareal (e se escorre em nossas veias
é porque não nos foi dado chão
senão no barro de que fomos tomados
emprestados)

sim
é um mar (que guarda ainda lágrimas de mães e esposas
e sangue de irmãos e pais

aquela melancolia séria
da miséria do caiçara)
como todos os mares (por mais distantes): malabar
um mar
de párias

*

aqui
à minha frente
o oceano em vão: separa duas índias
isola duas áfricas

(estende-se o palco da ação divina
de um lado a brisa que afaga
de outro a crina que fustiga
cabeças de pedras
ou estirões de areia
infinita)

eu (vivo a vida inteira os limites da oceania
desta península que ameaça sempre invadir a
água
mas deixa o mar escorrer (cardumes caóticos berços viveiros)
entre as pernas
e entre os braços

para dentro
para sempre)
sou paralelo
como farelo de alegria

tenho irmãos naquela ponta que o meu olho ronda?
que latitudes de querer quererão eles que eu fixe
(a que bel-prazer
de que
de qual
sextante alegre ou triste)?